domingo, 14 de julho de 2013

14 DE JULHO - O EU LÍRICO

NOTA DE ESCLARECIMENTO

Ou o Eu Lírico



Lutar com palavras
É a luta mais vã.

Carlos Drummond de Andrade

Concordo com Drummond em gênero, número e grau. 

As palavras vêm e vão sem nos darmos conta, e nada, nem ninguém, consegue detê-las. 

Exatamente por isso, decidi escrever esta nota de esclarecimento sobre o Eu Lírico. 

Dias atrás postei o poema “Cosmopo-vita  - ou Diálogo com o Vazio)” [leia a versão reduzida  abaixo], o qual deu margem a tamanha controvérsia, a ponto de alguns conhecidos chegaram a me enviar por e-mail o contato de seus psiquiatras - mas... 

- Não! Não estou deprimida! Introspectiva, talvez.

O início desse poema nasceu há muito tempo e foi resgatado durante minha mudança. Ele estava em um caderninho que fazia parte de meus guardados e se encontrava aberto - por obra do mero acaso - na página abaixo. A princípio, o texto era dedicado a uma bailarina, mas resolvi mudar o foco e usar o poema como exercício criando um Eu Lírico diferente e um jogo de palavras que rimassem, fizessem sentido e se transformassem em imagens. Simples assim.

esboço de Cosmopo-Vita

COSMOPO-VITA OU DIÁLOGO COM O VAZIO
(na íntegra em
http://ritualdoalimento.blogspot.com.br/2013/07/09-de-julho-cosmopo-vida.html)

Na ressaca do sono,
de noites perdidas,
tento, penso, 
acercar-me de ti.

Vagando ao acaso,
no brilho do ocaso,
te testo, incesto,
Replicas por fim:

Sou o amor momento,
mero alento,
fugaz sentimento
sem nenhum intento...

Encontro fortuito,
sem qualquer intuito. 

O Nada em si,
simples assim. 




Penso que alguns devem estar a perguntar: “Mas que raios é esse tal de Eu Lírico?”. 

Ele é o “eu” que fala na poesia e é geralmente usado em textos de gênero lírico e não expressa, necessariamente, os sentimentos do autor, mas, sim, os do Eu Poético. Ele é a “voz” que fala no poema ou texto em prosa e expressa ideias, emoções, pensamentos...

Portanto, o Eu Lírico que escolhi fala por mim, mas não representa quem sou, como estou e reitero:

- Não! Não estou deprimida! Introspectiva, talvez.

Chega a ser engraçado, mas alguns acreditam que em virtude de, vez por outra, eu usar estruturas do português continental, ou seja o “Português de Portugal”, eu venha da "terrinha". Que descalabro!!! Sou brasileiríssima, contudo, meu Eu Lírico, de quando em quando, teima manifestar-se de modo castiço. 

No entanto, origens à parte, acredito que ninguém escreva, fale, se expresse com propriedade sobre tristeza, amor, decepções vividas sem um dia ter experienciado tais sentimentos, entretanto, não é preciso ter sido violentada para escrever a respeito da dor do estupro – o primordial é sentir empatia pelas pessoas que o foram, colocar-se no lugar do outro, compreender sua comoção, pesar, para não nos restringirmos a ser simples narradores banais de um discurso vazio - pois, como já dito por Fernando Pessoa no poema “Autopsicografia”: 





O poeta é um fingidor. 

Finge tão completamente

Que chega a fingir que é dor

A dor que deveras sente.

Outra estratégia usada por escritores, atores, bailarinos, artistas plásticos... para se expressar com propriedade, independentemente do meio escolhido, é o que chamo de “resgate lato”.

Usando como exemplo o estupro, essa estratégia implica no resgate de momentos em que nossos princípios, nossa ética, nossa moral foram violados e na transposição de sua intensidade e emoção para o Eu Lírico ou Poético.

Infelizmente, por desconhecimento, alguns não discriminam o ator da personagem; o autor do texto; o poeta do sofrimento. O que seria de Anthony Hopkins se ele tivesse em si Hannibal Lecter, o psicopata brilhantemente interpretado no filme “O Silêncio dos Inocentes”? Um ser sem qualquer traço de consciência. De Carlos Drummond de Andrade se fosse a própria encarnação de José, o foco de um de seus poemas? Um homem perdido; sem eira nem beira.




Dizem que a vida imita a arte - que a arte imita a vida. Tanto faz, uma não vive sem a outra, uma não invalida a outra.

Artistas, de modo geral, são pessoas intensas que observam o mundo sob uma ótica distinta, taxados, por vezes, de modo pejorativo, como excêntricos.

Sua visão de mundo não condiz com a da sociedade do espetáculo - do hiperprazer, do hipermomento, do hipernada, do hipertudo; tão fugaz, tão efêmera - e essa às vezes, incomoda, toca a ferida, cutuca a casa de marimbondos dormente em nosso interior.

Vivemos na sociedade do “Vamos em frente que atrás vem gente!”, do “Cada um por si, Deus por todos”, da “Ausência e da Aparência” (ou da felicidade sem lembranças).

Não digo com isso que devamos nos deixar levar pela depressão, pelo negativismo, mas, sim, ter uma visão crítica de nosso momento. Caso contrário, os filhos, dos filhos, de nossos filhos, continuarão a viver um jogo de gato e rato, um jogo de aparências no qual - parafraseando José Saramago : “Estarão na Caverna de Platão, uma espécie de "Luna Park" vislumbrando, quando muito, parcas imagens da realidade, presos pelos grilhões do imediatismo, da ostentação, da tirania do cotidiano, da ilusão hedonista.


- Não! Não estou deprimida. Apenas buscando manter-me lúcida perante à sociedade do espetáculo.

Atenta e afastada do hiperuniverso que nos abarca e faz sofrer.

Quero, como já disse, ser íntegra comigo mesma. Minuto após minuto, dia após dia, sempre.

Beijos em consonância com meu Eu Lírico,
Cláudia Coelho



O pensar do artista

PS: Ao conversar sobre esta crônica com um amigo, tive um insight. Como hoje poucos se dedicam a escrever poemas declarando sua paixão a seus amores , O Eu Lírico em sua forma hipercontemporânea transformou-se em "Eu Digital" - um perfil elaborado, colocado nas redes sociais, nos sites de relacionamentos... espaços onde temos liberdade para criar  uma "persona ideal" - ser quem queremos, como queremos, quando queremos - em consonância com o que imaginamos se espera de nós -  e "vender" essa imagem sem nos expormos, sem nos revelarmos, sem correr o risco de que alguém bata à nossa porta e vislumbre nosso verdadeiro Eu.

PS 2:  Acabei de receber uma mensagem vinda de um hospital bibliotecário, encaminhada pelo Eu Lírico - meu conhecido de longa data - na qual, agonizante, afirma temer ser substituído em todas instâncias pelo "Eu Digital" e estar prestes a editar sua Nota de Falecimento.  


Tomada, portanto, por sua dor decidi criar a campanha: "Salve o Eu Lírico", da qual para participar basta escrever, pensar, criar.  




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